Danilo Martin Real, Aluno de complementação especializada em Otoneurologia Clínica do HCFMUSP
Luis Gustavo Cattai Zamboni, Aluno de complementação especializada em Otoneurologia Clínica do HCFMUSP
Roseli Saraiva Moreira Bittar, Professora assistente do setor de Otoneurologia do HCFMUSP.
Paciente masculino de 44 anos, conta uma história de 7 meses de desequilíbrio periódico que dura horas. As crises vêm aumentando de frequência no período e ocorrem ao caminhar e ao levantar-se, acompanhadas por turvação visual e náuseas eventuais. Não refere síncopes ou quedas. Apresenta chiado intermitente à esquerda há 6 meses, sem hipoacusia ou associação com a tontura. Há 30 dias começou a apresentar episódios de cefaléia hemicrânica pulsátil com náusea, fono e fotofobia que duram horas ou dias. Nega cinetose ou diagnóstico prévio de migrânea. Nega tontura posicional.
Há 7 anos tem diagnóstico de artrite reumatóide e utiliza metotrexate, ácido fólico, cloroquina (esporadicamente), sulfadiazina e ifliximab.
Ao exame físico observamos:
Romberg sem alterações
Nistagmo espontâneo torcional horário
Nistagmo semiespontâneo para baixo ao olhar inferior
Head Impulse Test; Head Shaking Nistagmus ; Skew Eye Deviation: sem alteração
Index-Nariz: dismetria à esquerda
Exame otoneurológico:
Audiometria: sem alterações.
Eletronistagmografia:
Nistagmo espontâneo ausente ao traçado.
Nistagmo semi espontâneo para baixo (downbeat) ao olhar inferior (Fig. 1).
Figura 1 – Nistagmo semiespontâneo downbeat ao olhar para baixo. São observadas na figura as derivações 2 e 3.
Nistagmo ageotrópico em ambos decúbitos laterais (Fig.2)
Nistagmo downbeat na posição de Rose (Fig.3)
A
Figura 2 – Nistagmos posicionais. Em A para a esquerda (ageotrópico) no decúbito lateral direito; Em B nistagmo para direita (ageotrópico) no decúbito lateral esquerdo.
Figura 3 – Presença de nistagmo downbeat na posição de Rose
Figura 4 – Presença de nistagmo optocinético horizontal assimétrico.
As respostas calóricas realizadas com estimulação a água apresentam velocidades angulares normais. Entretanto, a observação do traçado revela alterações do ritmo e da morfologia dos movimentos oculares (Figura 5).
Figura 5 – Nistagmos resultantes da estimulação calórica a 44 graus na orelha esquerda. São observadas alterações morfológicas dos nistagmos e variação de sua amplitude (disritmia).
Figura 6 – Nistagmo espontâneo observado com videonistagmografia. Nistagmo downbeat com componente torcional horário.
Avaliação neurológica:
Reflexos: hipoativos em membros superiores e exaltados em membros inferiores.
Pesquisa de sensibilidade cutânea: Hemianestesia superficial e profunda do lado esquerdo em rebordo costal, membro superior, região cervical e hemiface.
Investigação de pares cranianos: ausência do reflexo nauseoso; paralisia de prega vocal esquerda, paresia de prega vocal direita e incompetência velofaríngea.
Ressonância Magnética de Crânio (Fig. 7)
Insinuação de tonsilas cerebelares através do forame magno em 1,2 cm à direita; Extensa hidrossiringomielia de C1 à D12, com afilamento do parênquima medular.
Figura 7 – Ressonância magnética em ponderação T2. A seta indica a invaginação cerebelar.
Diagnóstico Final
Malformação de Chiari I com hidrossiringomielia.
DISCUSSÃO
Anamnese: alguns detalhes merecem destaque na história, como a cefaléia de início recente, turvação visual ao assumir a posição de ortostase e disfonia. São queixas que não podem ser explicadas por doenças vestibulares periféricas.
Exame clínico: o nistagmo downbeat ao olhar inferior e a incoordenação do teste de Index-Nariz chamam a atenção para um comprometimento cerebelar. A ausência de reflexo nauseoso no teste do IX par e a paresia bilateral de pregas vocais vista posteriormente na nasofibroscopia sugerem lesão em tronco baixo.
Eletronistagmografia: alterações oculomotoras significativas no nistagmo optocinético e a presença de disritmia na resposta calórica reforçam a suspeita de acometimento cerebelar.
Qual a importância do nistagmo downbeat?
A presença de nistagmo downbeat na posição primária do olhar é um sinal clínico de disfunção do sistema nervoso central.1 As etiologias mais comuns do nistagmo downbeat são a atrofia cerebelar, isquemia vertebrobasilar, esclerose múltipla, malformação de Arnold Chiari, intoxicação por lítio e anticonsulsivantes2,3. Cerca de 40% dos casos são classificados como idiopáticos pois não é encontrada lesão anatômica na investigação3. O mecanismo fisiopatológico proposto sugere que o nistagmo downbeat é o resultado da lesão das células de Purkinje presentes no flóculo cerebelar. Esses neurônios possuem atividade espontânea inibitória nos movimentos oculares para cima. O comprometimento das células do flóculo reduz sua capacidade inibitória do músculo reto superior e seu tônus aumentado desloca o globo ocular para cima em um componente lento. Há então uma sacada corretiva para baixo e o aparecimento do nistagmo downbeat 4 (Figura 8).
Figura 8 – Ilustração da via tônica responsável pela contração do músculo reto superior e consequente nistagmo downbeat. Células de Purkinge (flóculo cerebelar); núcleo vestibular superior; III par craniano (nervo oculomotor) e músculo reto superior6.
Importante:
Quando encontramos a presença de um nistagmo downbeat posicional, o diagnóstico de Vertigem Posicional Paroxística Benigna (VPPB) de canal superior deve ser considerado. A doença decorre da migração de otólitos primariamente presentes na mácula utricular para o canal semicircular superior. Ao ser colocado na posição de cabeça pendente, o paciente apresenta nistagmo downbeat puro ou com componente torcional associado. Como o componente torcional da VPPB de canal superior é mais evidente que a componente torcional, é possível a confusão entre os dois diagnósticos. O tratamento pode ser realizado através manobra de Yacovino5 (Figura 9). Nos casos refratários a manobra de reposicionamento, a ressonância magnética deve ser considerada5.
Figura 9 – Manobra de Yacovino para reposicionamento do canal anterior7.
Malformação de Arnold Chiari
Descrita por Chiari, esta malformação congênita é caracterizada pela protusão do cérebro ou cerebelo inferiormente pelo canal cervical8. Sua forma mais comum é a congênita, classificada como tipo I, que ocorre nos primeiros meses de vida e está geralmente associada a outras malformações. A tipo II ocorre na idade adulta e é de maior interesse para o otoneurologista, uma vez que os sintomas nesta forma são alterações de marcha e tontura. Classicamente a tontura é referida como desequilíbrio, dificuldade para descer escadas em função da flexão cefálica e nistagmo downbeat. Em casos mais raros, a herniação pode causar compressão dos pares cranianos baixos, manifestada disfagia, disfonia e disartria. A obstrução da cisterna basilar pode gerar hidrocefalia.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS