Voltar Surdez Súbita: Por que o corticoide não funciona?

Patricia Sens

Mestre e Doutora  pela Faculdade de  Ciências  Médicas  da  Santa Casa de  SP

Médica  otoneurologista do Instituto de  Neurologia de  Curitiba.

Cesar Bertoldo Garcia

Assistente doutor doHospital das Clínicas da FMUSP

          De acordo com o National Institute for Deafness and Communication Disorders (NICDC) a Surdez Súbita (SS) ou Perda Auditiva Neurossensorial Súbita (PANS) pode ser definida como toda perda auditiva neurossensorial, igual ou maior que 30 dB, em três ou mais frequências consecutivas e que se instala em até três dias1. Ela representa até 1,7% dos atendimentos no consultório otorrinolaringológico2. É mais frequente entre a terceira e sexta décadas de vida e diminui nos extremos de idade3. A fisiopatologia da PANS permanece indefinida e em até 90% dos casos e, quando a causa não é identificada, é classificada como idiopática4. Para a maioria dos autores, os casos idiopáticos são atribuídos aos seguintes mecanismos: infecção viral, distúrbio microcirculatório, processo imunomediado e ativação das vias de estresse celular5. Infelizmente em poucos casos é possível chegar a um diagnóstico de certeza e a maioria das hipóteses fica no campo das probabilidades6.

          Segundo a última atualização do site UpToDate, todos os pacientes com PANS devem ser tratados com glicocorticoides, mesmo os casos idiopáticos e os que apresentam causa identificável7. No entanto, nem sempre esse tratamento é efetivo e utilizaremos 2 casos clínicos como exemplo para ilustrar o fato.

CASO CLÍNICO 1

TBCD, sexo feminino, 36 anos, foi atendida em um Pronto Atendimento de Otorrinolaringologia com perda auditiva súbita na orelha direita há 6 dias. Relatava zumbido contínuo ipsilateral e crise vertiginosa severa, com náuseas e vômitos. O exame físico otorrinolaringológico (otoscopia, oroscopia e rinoscopia) era normal. Não havia queixa de cefaleia, diplopia, síncope ou qualquer outro sinal ou sintoma neurológico. Recebeu prescrição de prednisolona 60 mg ao dia e meclizina 25 mg de 8/8 horas e foi encaminhada para seguimento ambulatorial.

          Durante a avaliação com o otoneurologista, seis dias após, a paciente persistia com sintomas auditivos, embora relatasse redução na intensidade da tontura que naquele momento era uma intolerância aos movimentos da cabeça. No exame de equilíbrio corporal a marcha Tandem e o teste de Fukuda não apresentavam alterações; sem nistagmo espontâneo ou evocado; os testes de impulso cefálico e estrabismo vertical não apresentavam alterações e a perseguição ocular era normal. Como antecedentes pessoais, a paciente negava comorbidades, cirurgias prévias ou uso de medicações contínuas. Seus exames complementares apresentaram os seguintes achados:

  1. Ressonância Magnética (RM) com difusão (DWI) de ouvido e ângulo-

ponto-cerebelar: estruturas da orelha interna sem alterações.

  1. Audiometria tonal e vocal e impedânciometria:

          Na audiometria (figura 1), confirmou-se uma perda auditiva neurossensorial profunda à direita, com Índice Percentual de Reconhecimento de Fala (IPRF) ausente e curvas timpanométricas do tipo “A” com reflexos acústicos ausentes (figura 2).

Figura 1: Audiometria inicial

Figura 2: Impedânciometria

  1. Video Head Impulse Test (VHIT):

          No VHIT conduzido na primeira consulta (figura 3), foi identificado baixo ganho no canal semicircular posterior (CSCP) direito, acompanhado por sacadas descobertas. Adicionalmente, registrou-se os “Anticompensatory Quick Eye Movements” (AQEM) no canal semicircular anterior (CSCA) esquerdo, achados que confirmam a lesão do CCSP direito (setas em vermelho). No mesmo exame foi possível identificar a presença de sacadas cobertas no canal lateral (CL) à direita (seta preta), padrão que sugere uma lesão prévia em processo de compensação.

Figura 3: VHIT de entrada. Queixa de surdez a direita com vertigens.

Seguindo o protocolo de tratamento, foi prescrita a prednisolona na dose de 1 mg/kg/dia por mais 8 dias, totalizando duas semanas de corticoterapia sistêmica. Após esse período, por não existir melhora foi iniciada terapia de resgate. Optou-se por infiltrações intratimpânicas com 0,5 ml dexametasona 24 mg/ml, em 4 sessões ao longo de 2 semanas. Ao final das injeções não houve qualquer melhora dos sintomas.

Em exame de acompanhamento, realizado após 3 meses da primeira consulta, não eram mais observadas as sacadas cobertas no CL direito (Figura 4). O achado sugere uma compensação adequada do RVO nesse plano. No entanto, persistia a hipofunção no CSCP direito e surgiram novas lesões nos canais semicirculares lateral e posterior esquerdos. São observados hipoganho com sacadas cobertas do lado contralateral à orelha em estudo, alterações destacadas pelas setas em vermelho.

Figura 4: VHIT após 3 meses

CASO CLÍNICO 2

          MCL, sexo masculino, 64 anos, apresentou perda auditiva súbita e zumbido em ouvido direito (OD), acompanhados por vertigem incapacitante, náuseas e vômitos por uma semana. A tontura era desencadeada ao deitar-se e melhorou parcialmente após a realização de manobras de reposicionamento por fisioterapeuta. O exame físico otorrinolaringológico (otoscopia, oroscopia e rinoscopia) era normal. Na avaliação clínica específica, não foram observados desvios em teste de Fukuda ou à marcha Tandem. A pesquisa de nistagmos espontâneo e semi-espontâneos foi negativa. Os testes de impulso cefálico, estrabismo vertical e Head Shaking não apresentaram alterações. O seguimento ocular estava dentro dos parâmetros normais.

          Como antecedentes pessoais, havia histórico de duas cirurgias prévias para varizes em membros inferiores, realizadas há 8 anos e há 1 ano. Após a última cirurgia, foi prescrito o uso diário de Ácido Acetilsalicílico e cumarina + troxerrutina 15 mg, mas os medicamentos foram interrompidos há 2 meses do evento atual. Seus exames complementares apresentaram os seguintes achados:

  1. Ressonância Magnética (RM) com difusão (DWI) de ouvido e ângulo-

ponto-cerebelar: tênues lesões inespecíficas na substância branca de ambos os hemisférios cerebrais, comumente relacionados a gliose por microangiopatia/aterosclerose (figura 5).

Figura 5: RM mostra atenuações em hemisfério cerebelar direito

(setas brancas).

  1. Audiometria tonal e vocal e impedânciometria:

          A audiometria (figura 6), demonstra perda auditiva neurossensorial descendente de grau severo (OMS-2020), com comprometimento importante do IPRF. À impedanciometria são observadas curvas do tipo “A”, com reflexos acústicos ausentes.

Figura 6: Audiometria demonstra perda neurossensorial em agudos a esquerda e rebaixamento auditivo em rampa descendente acometendo especialmente as altas frequências a direita.

  1. Video Head Impulse Test (VHIT):

          Ao VHIT constatou-se uma hipofunção do CSCP direito, com baixo ganho e presença de sacadas descobertas. Os demais canais demonstraram funcionamento preservado.

Figura 7: Video Head Impulse Test com baixo ganho e sacadas descobertas em CSPD (seta vermelha)

Discussão

          Todos os indivíduos que enfrentam uma PANS têm indicação de RM com contraste para descartar condições patológicas retrococleares, como schwannoma, meningioma do ângulo ponto-cerebelar, entre outras. Esse procedimento foi realizado para ambos os pacientes. No primeiro caso não foram encontradas alterações na primeira RM, porém, no segundo a presença de microangiopatia foi identificada.

          A comprovação de uma perda auditiva neurossensorial severa/profunda por meio da audiometria e uma apresentação clínica inicial com sintomas vestibulares associados são sinais de prognóstico desfavorável para ambos os pacientes. No primeiro caso não havia suspeita clínica de etiologia específica, e, de acordo com as diretrizes mais recentes8 deve ser iniciado o corticoide. A abordagem terapêutica padrão prevê o uso de corticosteroides sistêmicos seguida sequencialmente pela terapia de resgate com injeções intratimpânicas. Neste caso, sem resultados satisfatórios.

          A investigação das queixas vestibulares por vHIT é uma conduta fácil, simples e nos dois casos revelaram lesões agudas no CSCP direito, com baixo ganho e sacadas descobertas. O seguimento posterior do primeiro caso foi um dado fundamental na identificação etiológica do evento. Após 3 meses, novas alterações foram observadas nos canais semicirculares posterior e lateral esquerdos. A evolução atípica despertou para a possibilidade de uma tromboembolia, pois o início súbito, esparso e recorrentes sugerem obstruções pontuais. A falta de resposta ao tratamento com corticoides reforça a hipótese. Chama a atenção tratar-se de uma paciente jovem, normalmente fora da faixa de risco para eventos vasculares. No entanto, havia uma pista no primeiro exame – a presença de lesão compensada do canal lateral direito, apontando para lesões recorrentes e em tempos diferentes dessas estruturas. Uma avaliação cardiológica foi então solicitada e o ecocardiograma revelou a existência de um forame oval patente, com aproximadamente 8mm, condição predisponente para embolia paradoxal e acidente vascular cerebral (AVC). Eis porque a corticoterapia não foi efetiva.

No segundo caso, o tipo de perda auditiva e a lesão isolada do canal posterior do mesmo lado, apontam para a mesma etiologia vascular. Neste caso, trata-se de um paciente idoso, com histórico de doença vascular, que recentemente havia interrompido o tratamento farmacológico com antiagregantes. O caso já sugere a etiologia tromboembólica. Como reforço para o diagnóstico, havia microangiopatia à RM de crânio. Sendo assim, o risco de doença vascular e AVC é alto. Não há indicação de corticoterapia.

          Ao revisar a anatomia vascular da orelha interna e avaliar os resultados dos exames realizados por cada paciente, é razoável inferir que: no primeiro caso tenha ocorrido um evento isquêmico na artéria coclear comum, responsável pela irrigação de toda a cóclea e do canal semicircular posterior (figura 8A). No segundo caso, a obstrução do ramo cócleo-vestibular explica a perda auditiva típica em agudos e lesão do CSCP (figura 8B).

Figura 8- 8A: Caso 1 – provável oclusão da a. coclear comum; 8B: Caso 2 – provável oclusão do ramo cócleo-vestibular. 

Para melhorar o topodiagnóstico das perdas auditivas, é possível a abordagem com outros exames como os VEMPs. Aliados à audiometria e VHIT, proporcionam um mapeamento funcional mais completo do território cocleovestibular. Por fim, as provas calóricas nos forneceriam informações relevantes sobre as vias intercomissurais9.

          Em síntese, na abordagem dos pacientes com PANS que apresentam sintomas vestibulares, é fundamental traçar o topodiagnóstico vestibular. A realização do VHIT, e de outros exames que fazem o mapa funcional de todas as estruturas da orelha interna, auxiliam na identificação etiológica. No primeiro caso, a PANS idiopática apresentava origem cardiológica. No segundo caso, uma lesão periférica de cóclea e canal posterior escondia uma doença vascular com alto risco de AVC.

Outro ponto a ser discutido são os protocolos de tratamento para PANS e o uso generalizado de corticosteroides7,8. Nos pacientes que apresentam etiologia vascular essa estratégia medicamentosa não demonstra eficácia, agrava doenças de base e aumenta o risco de efeitos colaterais. Portanto, a decisão terapêutica deve ser cuidadosamente ponderada, para otimizar os resultados e minimizar os possíveis riscos. A personalização do tratamento, levando-se em consideração a fisiopatologia subjacente, é crucial para uma abordagem mais eficaz e segura.

Referências Bibliográficas

1.           National Institute on Deafness and Other Communication Disorders.   NIDCD Fact Sheet: Sudden Deafness. Washington, DC: US Department of Health and Human Services2018.

2.           Niknazar S, Bazgir N, Shafaei V, Abbaszadeh HA, Zali A, Asghar Peyvandi A. Assessment of prognostic biomarkers in sudden sensorineural hearing loss: A systematic review and meta-analysis. Clin Biochem. Nov 2023;121-122:110684. doi:10.1016/j.clinbiochem.2023.110684

3.           Bittar RSM, Zerati FE, Domingues EC, Ramalho JRO, Bento RF. Surdez súbita: experiência terapêutica de dez anos. Arq Int Otorrinolaringol. 2007;11(3):300-304.

4.           Schreiber BE, Agrup C, Haskard DO, Luxon LM. Sudden sensorineural hearing loss. Lancet. Apr 3 2010;375(9721):1203-11. DOI: S0140-6736(09)62071-7 [pii]

10.1016/S0140-6736(09)62071-7

5.           Stachler RJ, Chandrasekhar SS, Archer SM, et al. Clinical practice guideline: sudden hearing loss. Otolaryngol Head Neck Surg. Mar 2012; 146(3 Suppl):S1-35. doi:10.1177/0194599812436449

6.           Chau JK, Lin JR, Atashband S, Irvine RA, Westerberg BD. Systematic review of the evidence for the etiology of adult sudden sensorineural hearing loss. Laryngoscope. May 2010;120(5):1011-21. doi:10.1002/lary.20873

7.           Weber P. Sudden Sensorineural Hearing Loss in Adults: Evaluation and Management. Accessed 6 january 2024, https://www.uptodate.com/contents/sudden-sensorineural-hearing-loss-in-adults-evaluation-and-management

8.           Chandrasekhar SS, Tsai Do BS, Schwartz SR, et al. Clinical Practice Guideline: Sudden Hearing Loss (Update). Otolaryngol Head Neck Surg. Aug 2019;161(1_suppl):S1-S45. doi:10.1177/0194599819859885

9.           Bittar RSM, Mezzalira R, Ramos ACM, Risso GH, Real DM, Grasel SS. Vestibular recruitment: new application for an old concept. Braz J Otorhinolaryngol. 2022;88 Suppl 1(Suppl 1):S91-S96. doi:10.1016/j.bjorl.2021.04.006