Voltar Metabolismo dos carboidratos e sua relação com a tontura


Roseli Saraiva Moreira Bittar, Professora assistente do Setor de Otoneurologia do HCFMUSP.

Raquel Mezzalira, Mestre em Otorrinolaringologia pela UNICAMP e Otoneurologista do Instituto Penido Burnier

 

Considerações gerais

A atividade metabólica da orelha interna é intensa e depende do suprimento permanente de glicose e oxigênio para a manutenção do potencial endococlear. Uma vez que não dispõe de reservas armazenadas, é fácil entender porque o labirinto é considerado um “sensor” de pequenas alterações metabólicas pois sofre comprometimento funcional a partir de pequenas variações no fornecimento de energia. A insulina possui papel de catalisador do metabolismo glicídico diretamente envolvido na atividade da enzima Na-K-ATPase. Essa enzima é responsável pelo potencial endococlear que é resultado de altas concentrações de potássio e baixas concentrações de sódio na endolinfa. Sua atuação envolve grande gasto energético, sendo tanto a insulina quanto a glicose fundamentais na produção da energia necessária para essa atividade, mantida por meio de transporte ativo. Em situações de aumento da resistência periférica à insulina, a atividade da Na-K-ATPase é bloqueada, há elevação da concentração de sódio eretenção hídrica na endolinfa(1).Situação conhecida como hidropisia (Figura 1).

 

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Figura 1: Efeito da resistência à insulina na atividade da bomba Na-K-ATPase. Em situação de normalidade a Na-K-ATPase presente nas células da estria vascular transporta ativamente o potássio para a endolinfa. Quando a Na-K-ATPase é inativada, há difusão de sódio para a endolinfa com arraste de água. O acúmulo de líquido no compartimento endolinfático gera a hidropisia.

 

A diabetes também afeta o funcionamento do labirinto. Nesse caso, porém, além dos mecanismos colocados, podem coexistir a microangiopatia e neuropatia diabética. O sofrimento neuro-vascular prejudica o aporte de nutrientes e conduz à consequente limitação funcional do labirinto.

 

Caracterização dos sintomas

Os pacientes portadores de distúrbios metabólicos podem apresentar qualquer sintoma labiríntico. Porém alguns são mais característicos da intolerância aos carboidratos como a instabilidade, a sensação de flutuação, plenitude auricular, hipoacusia e zumbidos. Os sintomas auditivos podem corresponder a momentos de hidropisia endolinfática secundária à retenção hídrica. Outros sintomas como fraqueza, sudorese, tremores e sensação de desmaio sugerem hipoglicemia típica. Na investigação de hábitos alimentares, são comuns relatos de compulsão por doce e períodos prolongados de jejum. Esses pacientes frequentemente possuem cefaleia.

Dentre os portadores de disfunção do metabolismo dos carboidratos, existem ainda os indivíduos que apresentam disfunção das dissacaridases presentes na mucosa jejunal. Nesse caso, há prejuízo na absorção da lactose, dependente do processamento enzimático para sua absorção. Além dos sintomas cócleo vestibulares nestes casos, podemos encontrar diarreia, flatulência e cólicas abdominais.

Já os diabéticos podem refererir desde desequilíbrios e instabilidade até vertigens associadas a sintomas auditivos, mas o sintoma mais comum é a hipoacusia progressiva e não flutuante. Entretanto, nesses pacientes a labirintopatia costuma apresentar caráter multifatorial uma vez que há também comprometimento vascular, proprioceptivo e, às vezes, visual.

 

Abordagem diagnóstica

A boa anamnese se inicia com a caracterização dos sintomas e os antecedentes pessoais e familiares. A presença de diabetes na família é um achado frequente e importante no histórico desses pacientes.

 

Avaliação laboratorial

Para os pacientes que relatam antecedentes familiares de diabetes ou evidências clínicas de relação entre aparecimento de tontura e jejum prolongado ou ingestão de açúcares, a realização da curva glicoinsulinêmica de 3 horas está indicada para estabelecer o diagnóstico de intolerância à glicose.

 

Para ser considerada alterada a curva glicoinsulinêmica de 3 horas deve obedecer aos seguintes parâmetros (Figura 2):

  • Glicemia inferior a 55 mg/dL ou superior a 200 mg/dL em qualquer momento do exame;
  • Glicemia entre 145 e 200 mg/dL em qualquer momento do exame;
  • Redução da glicemia maior que 30 mg/dL em meia hora;
  • Soma dos valores de insulina das 2ª e 3ª horas acima de 75 mg/dL.

 

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Figura 2:Valores observados na curva glico-insulinêmica. Em amarelo ascurvas de glicemias normais durante a prova: o espaço delimitado entre as duas linhas compreende a área de medidas que caracterizam a intolerância à glicose; pontilhado em azul define o limite entre a intolerância à glicose e diabete; em verde a curva normal de insulina(2).

 

A curva glicêmica e insulinêmica pode ser normal se o paciente estiver em fase de metabolismo compensado, mas o fato não afasta o diagnóstico de intolerância à glicose. Diante de uma curva insulinopênica em que todos os valores de insulina são menores que 50U/L, deve-se considerar a possibilidade de um quadro de insuficiência de dissacaridases como causa da disfunção vestibular. Para a comprovação diagnóstica pode ser feito o teste de tolerância à sobrecarga oral com lactose que é considerado alterado quando os níveis de glicose não atingem o valor de 25mg/dL acima do valor de jejum durante as coletas obtidas em 120 minutos de prova – o achado caracteriza a má absorção(3). Frequentemente os pacientes apresentam distensão abdominal, gases e diarréia durante o exame ou após algumas horas.

Outra maneira de avaliar a má absorção da lactose é por meio do teste respiratório de intolerância à lactose realizado pela detecção e medida dos níveis de hidrogênio expirado após sobrecarga oral com lactose. A absorção inadequada do açúcar estimula o trânsito intestinal rápido, a lactose chega precocemente ao colon onde sua degradação pela flora bacteriana produz hidrogênio que é absorvido pelos vasos sanguíneos e exalado pela respiração. O teste é considerado positivo quando o hidrogênio expirado aumenta em 20 ppm com relação ao valor basal(4). Há ainda o teste genético em que o DNA genômico do paciente é extraído de uma amostra de sangue e submetido à análise de polimorfismos de nucleotídeo único.

 

Avaliação audiométrica

Nos indivíduos intolerantes aos carboidratos a audiometria pode ser normal, apresentar perda sensorioneural em graves, plana, em U invertido ou ainda apresentar flutuação dos limiares tonais. Nos pacientes diabéticos a perda sensorioneural é bilateral e a curva tonal tende a ser descendente com perda auditiva principalmente em agudos.

 

Video ou eletronistagmografia

O achado mais frequente é a hiperreflexia pós calórica, geralmente bilateral e simétrica. É o achado funcional que pode justificar a instabilidade apresentada pelos doentes (Figura 3). Outros achados são os nistagmos posicionais que demonstram a sensibilidade aos estímulos vestibulares (Figura 4). Em casos de longa evolução a hiporreflexia bilateral e simétrica pode ser observada.

 

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Figura 3: Hiperreflexia pós calórica. São observadas as respostas pós calóricas de elevada velocidade angular e ausência de predomínio labiríntico e preponderância direcional.

 

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Figura 4: Provas posicionais. Nistagmos para a direita de 10,8 graus de velocidade angular no eixo horizontal. Observado no decúbito lateral esquerdo. A presença de nistagmos desencadeados pela posição cefálica demonstram a labilidade de resposta à informação periférica.

 

Video head impulse test (vHIT)

O exame avalia o reflexo vestíbulo ocular em altas frequências de estimulação da cabeça e vem sendo utilizado como complemento à bateria vestibular clássica. É de fundamental importância nos quadros agudos onde demonstra um comprometimento do reflexo vestíbulo ocular,utilizado como uma ferramenta valiosa para diferenciar entre etiologias periféricas e centrais. Nos quadros vestibulares crônicos apresenta-se alterado de acordo com o grau de comprometimento do vestíbulo nas altas frequências de estímulo. Não temos encontrado padrões específicos de alterações no teste nos casos de distúrbios metabólicos da glicose. Não se trata de elemento para diagnóstico etiológico, mas caracteriza o grau de comprometimento do reflexo nos casos já diagnosticados.

 

Posturografia dinâmica computadorizada (PDC)

A PDC possibilita a avaliação do reflexo vestíbulo-espinal e da integração sensorial entre as várias aferências do equilíbrio. É considerado “padrão ouro” na avaliação do equilíbrio corporal. Clinicamente pode determinar se há alteração do equilíbrio ou não, quantificando-a e verificando se está relacionada às aferências sensoriais, à integração central das informações, ao controle motor reflexo ou a uma combinação de todos esses fatores.

As principais condições que avaliam a função vestibular são as que permitem oscilação da plataforma de força, ou seja, as condições 4, 5 e 6. Nessas situações a oscilação fisiológica do centro de gravidade do corpo provoca instabilidade doequilíbrio corporal e obriga o paciente a utilizar a informação vestibular para corrigir sua postura e não cair. Nesse caso, o sistema vestibular é a aferência cuja precisão da informação tem o maior impacto na estabilização corporal. A condição 5 é a situação que melhor avalia o sistema vestibular isoladamente, considerando que nela o paciente encontra-se sobre uma plataforma instável e não dispõe da informação visual.

Pacientes com disfunção de metabolismo de carboidratos apresentam alterações na condição 5 confirmando que a doença compromete o equilíbrio corporal por disfunção da informação vestibular. Nosso grupo verificou que o desempenho desses pacientes nessa mesma condição melhora consideravelmente após instituição de dieta fracionada e restritiva de carboidrato (Figura 6).

 

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Figura 6: Posturografia dinâmica computadorizada. Em A observa-se o exame pré dieta em paciente portador de disfunção do metabolismo de glicose; em B o mesmo paciente após 30 dias de dieta(5).

Tratamento

Baseia-se na instituição de dieta específica para quadros metabólicos que compreende a redução da proporção de carboidratos na dieta, sobretudo aqueles de absorção rápida, aumento da frequência das refeições (intervalos ideais a cada 3 horas) e aumento da ingesta de água (de 1.5 à 2 litros ao dia). A dieta é comprovadamente eficaz para o controle dos sintomas auditivos e vestibulares com melhoras documentadas nos sintomas por meio de análises subjetivas com questionários ou escalas análogo visuais e também exames complementares(5).

Além da dieta recomenda-se prática de atividade física regular, controle de estresse, bons hábitos de sono etc.

Para os pacientes diabéticos é fundamental o controle da doença para preservação da função cócleo vestibular.

 

Referências bibliográficas

  1. Fukuda Y. Glicemia, Insulinemia e Patologia da Orelha Interna. São Paulo, 1982. Tese (Doutorado). Escola Paulista de Medicina.
  2. Bittar RSM, Sanchez TG, Santoro PP, Medeiros IRT. O metabolismo da glicose e o ouvido interno. Arquivos da Fundação Otorrinolaringologia. 1998; 2(1):4-8.
  3. Albernaz PLM. Doenças metabólicas da orelha interna. RBM – Otorrinolaringologia. 1995; 2(1): 18-22.
  4. Gasbarrini A, Corazza GR, Gasbarrini G et al. Methodology and indications of H2-breath testing in gastrointestinal diseases: the Rome Consensus Conference. Aliment PharmacolTher 2009; 29:suppl 1:1-49.
  5. Bittar RSM, Santos MDA, Mezzalira R. Glucose metabolism disorders and vestibular manifestations: evaluation through computerized dynamic posturography. Braz J Otorhinolaryngol. 2016;82(4):372-6.

 



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